A REFORMA DA LEI DO CENTRO DE ESTUDOS JUDICIÁRIOS (4)
A FORMAÇÃO INICIAL
A formação inicial dos candidatos à magistratura deve ser uma formação multidisciplinar e vivencial.
A meu ver, o processo de formação inicial deverá conseguir:
- formar magistrados que tenham uma boa compreensão da função social que vão exercer e do seu estatuto constitucional e profissional;
- que, no exercício das suas funções, sejam capazes de apreender e compreender os factos da vida e a complexidade dos problemas que são colocados à sua apreciação, de os tratar com competência técnica, alto sentido de responsabilidade e de serviço à causa pública da justiça;
- e cuja entrada no sistema de justiça seja, para este, um factor de inovação.
Este período, que é um período de formação profissionalizante que parte dos conhecimentos sobre as principais áreas do direito adquiridos na universidade para reflectir e experimentar a sua aplicação à vida, complementando-os com conhecimentos de outros ramos do saber igualmente essenciais para o correcto cumprimento das funções, deverá ter quatro componentes essenciais:
1º A abordagem dos assuntos ou temas definidos no respectivo currículo em função da avaliação das necessidades essenciais da prática judiciária, de uma forma multidisciplinar e multifacetada, que inclua a vertente estritamente jurídica, mas também o tratamento do facto, a sua compreensão e envolvência social, a análise das expectativas e dos efeitos da intervenção judiciária, a contribuição de outras disciplinas imprescindíveis ao seu conhecimento e abordagem;
2º O aprender a saber ser magistrado, que implica o conhecimento aprofundado e a interiorização do respectivo estatuto constitucional e profissional, assim como das normas éticas e deontológicas, bem como o conhecimento e a integração na actividade regular dos tribunais,
3º O aprender a saber fazer, através da simulação e experimentação da execução de peças processuais e de actos judiciários, como processo de construção de um método adequado de abordagem e tratamento dos factos e das questões jurídicas;
4º O conhecimento da realidade externa ao mundo das magistraturas, que envolve a realização de estágios junto de outras profissões forenses, de outras instituições e entidades do sistema de justiça, do mundo social e económico, e o contacto com outras realidades culturais.
Este modo de conceber a formação inicial implica que a docência do centro de formação não esteja restringida a magistrados, mas que conte no seu quadro com membros de outras profissões jurídicas, assim como com profissionais de outras áreas do saber.
A opção quanto ao modelo de formação tem na base uma opção quanto ao modelo de magistratura que se defende, a qual tem, por sua vez, subjacente um modelo de justiça.
Dois modelos se têm oposto em Portugal: de um lado, o do magistrado funcionalizado, reprodutor das rotinas incrustadas e produzidas pelo próprio sistema, capaz de responder de forma esperada às questões que tem de decidir, sem espírito crítico e sem capacidade de iniciativa e de inovação; do outro, o do magistrado capaz de assumir o seu estatuto de independência e de autonomia, de compreender e de responder de forma culturalmente esclarecida aos desafios da actual complexidade social, com espírito crítico e capacidade de iniciativa e de inovação.
Opto claramente por este segundo modelo.
A formação inicial dos magistrados judiciais e do Ministério Público deve ter períodos comuns de formação teórica e prática, bem como períodos de formação específica para cada uma das magistraturas.
Desde 1998 que em Portugal os futuros juízes e procuradores têm períodos de formação conjunta não apenas no Centro de Estudos Judiciários, mas também nos tribunais, junto de magistrados judiciais e do Ministério Público, antes de optarem pela magistratura em que pretendem ingressar.
No ano de 2000 foi efectuado um inquérito aos auditores de justiça que já tinham passado por essa experiência, ao qual responderam 72,8% dos destinatários, em que se pedia que avaliassem esse período de formação comum nos tribunais quanto a três aspectos: opção de magistratura, modo de apreender e abordar as situações práticas de relevo judiciário e compreensão do sistema judiciário. As respostas foram elucidativas: 70,7% considerou que “permitiu uma opção de magistratura mais consciente”; 91,5% considerou que “permitiu uma leitura e compreensão mais abrangente das situações práticas de relevo judiciário, em face dos diversos ângulos de abordagem”; 87,9% considerou que “permitiu uma melhor compreensão do funcionamento do sistema judiciário”.
A formação de futuros juízes e procuradores deve ser organizada conjuntamente e de acordo com um mesmo modelo. Com períodos de formação conjunta, tendo em vista a criação e fortalecimento de uma cultura judiciária comum a quem irá exercer funções de acordo com um paradigma judiciário também comum. Períodos de formação conjunta que devem continuar a englobar actividades no CEJ e nos tribunais, pelas razões que decorrem do modo como já aqui perspectivei a formação inicial, reforçadas por aquelas que foram sufragadas no inquérito cujos resultados acabei de expor.
Claro que é também essencial que, no processo de formação inicial e depois de os auditores de justiça terem feito a sua opção de magistratura, existam espaços de formação específica para futuros juízes e para futuros procuradores, pois as características próprias de cada uma das funções exigem uma formação própria.
As propostas no sentido da separação da formação das magistraturas são tributárias de uma visão técnico-burocrática da actividade judiciária, de um modelo conservador de reprodução de rotinas e de isolamento das magistraturas entre si, e ambas do tecido social. E não reflectem qualquer análise séria dos resultados do actual processo de formação.
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