sexta-feira, maio 19, 2006

HOMENAGEM À LIBERDADE DE CRIAÇÃO

CÂNTICO

Num impudor de estátua ou de vencida,
coxas abertas, sem defesa ... nua
ante a minha vigília, a noite e a lua,
ela, agora, descansa, adormecida.

Dos seus mamilos roxo-azuais, em ferida,
meu olhar desce aonde o sexo estua.
Choro ... e porquê? Meu sonho, irreal, flutua
sobre funduras e confins da vida.

Minhas lágrimas caem-lhe nos peitos ...
enquanto o luar a nimba, inerte, gasta
da ternura feroz do meu amplexo.

Cantam-me as veias poemas nunca feitos ...
e eu pouso a boca, religiosa e casta,
sobre a flor esmagada do seu sexo.

José Régio

Este é um dos poemas publicados, em 1965, na Antologia de Poesia Portuguesa Erótica e Satírica, compilada por Natália Correia e editada por Fernando Ribeiro de Mello, em cujo prefácio David Mourão Ferreira escreveu:
"Não ter medo das palavras e não recear as realidades que elas exprimem, é, sobretudo, evitar o trânsito pelo consultório do psiquiatra".
E, prevendo o que veio a acontecer, alertou:
"Obra de erudição, de criação e de civismo, há-de constituir, para os vindouros, um documento indispensável e o nome da sua autora tornar-e-á credor da mais legítima gratidão; mas é provável que também suscite, em meia dúzia de paranóicos, em duas ou três dezenas de recalcados, a sádica nostalgia das fogueiras do Santo Ofício".

De facto, o livro foi apreendido, autora e editor foram processados pelo "puritano" estado fascista, julgados no Tribunal Plenário e condenados.

Natália Correia escreveu, para se defender no Tribunal, um poema que, contudo, o seu advogado a advertiu para não ler porque comprometeria a defesa - chama-se A Defesa do Poeta:

Senhores juízes sou um poeta
um multipétalo uivo um defeito
e ando com uma camisa de vento
ao contrário do esqueleto.

Sou um vestíbulo do impossível um lápis
de armazenado espanto e por fim
com a paciência dos versos
espero viver dentro de mim.

Sou em código o azul de todos
(curtido couro de cicatrizes)
uma avaria cantante
na maquineta dos felizes.

Senhores banqueiros sois a cidade
o vosso enfarte serei
não há cidade sem o parque
do sono que vos roubei.

Senhores professores que pusestes
a prémio minha rara edição
de raptar-me em crianças que salvo
do incêndio da vossa lição.

Senhores tiranos que do baralho
de em pó volverdes sois os reis
sou um poeta jogo-me aos dados
ganho as paisagens que não vereis.

Senhores heróis até aos dentes
puro exercício de ninguém
minha cobardia é esperar-vos
umas estrofes mais além.

Senhores três, quatro, cinco e sete
que medo vos pôs por ordem?
que pavor fechou o leque
da vossa diferença enquanto homem?

Senhores juízes que não molhais
a pena na tinta da natureza
não apedrejeis meu pássaro
sem que ele cante minha defesa.

Sou um instantâneo das coisas
apanhadas em delito de paixão
a raiz quadrada da flor
que espalmais em apertos de mão.

Sou uma impudência a mesa posta
de um verso onde o possa escrever.
Ó subalimentados do sonho!
a poesia é para comer.