quinta-feira, fevereiro 09, 2006

AO CORRER DA REVISTA DO MINISTÉRIO PÚBLICO (7)

OCUPAÇÃO DE IMÓVEIS - FALTA DE CONSCIÊNCIA DA ILICITUDE

"M. reclama do despacho do Ex.mo Delegado do Procurador da República junto ao Tribunal do Seixal que não deduziu acusação e ordenou que os autos ficassem a aguardar melhor prova.
(...)
Resulta dos autos que , no dia 29 de Outubro de 1975, pelas 23h30m, o arguido P. entrou no primeiro andar de uma casa sita na estrada da Charneca da Cotovia arrendada, havia então cerca de 6 anos, ao marido da reclamante pelo pai do arguido e da qual fazia residência de férias, e daí transferiu todo o recheio para o rés-do-chão que então habitava. Em troca, o arguido fez subir os seus haveres do rés-do-chão para o primeiro andar onde se instalou com os seus familiares. A troca de habitação foi efectuada com o acordo e na presença da Comissão de Moradores da Aldeia de Cotovia que fundamentou a sua actuação no facto de a reclamante e seu marido só ali passarem as férias e o arguido lá morar permanentemente e ainda no facto de o rés-do-chão não oferecer o mínimo de condições de habilitabilidade para a família do arguido. O apoio da Comissão de Aldeia foi concedido após tentativas infrutíferas da mesma Comissão para conseguir o consentimento do marido da reclamante para a troca, e em conformidade com a deliberação repetida em dois plenários dos moradores da aldeia. Na reunião em que a Comissão de Moradores resolveu apoiar a troca de casas esteve presente um 1º Tenente da
Marinha Portuguesa e uma Força de Fuzileiros esteve presente na altura da ocupação da casa da reclamante.
(...)
No caso concreto dos autos, resulta dos factos apurados que o denunciado, em face doa novos princípios introduzidos no panorama sócio-político do país em consequência do 25 de Abril e do Programa do Movimento das Forças Armadas, se foi convencendo de que era seu direito a imposição aos queixosos da troca de casas. E isto tanto mais que o seu pai era o proprietário de ambos, estava de acordo com a troca e a casa, até ocupada por ele, poderia, em seu entender, continuar a servir aos queixosos para aí passarem as férias e os fins-de-semana. Esta convicção do arguido mais se deve ter radicado em si quando viu a sua pretensão apoiada pela Comissão de Moradores, por dois plenários dos moradores da aldeia e pelos próprios militares que acabariam por estar presentes aquando da execução da troca ... O próprio DL 198A/75 teve como princípio informador fundamental o princípio, aliás, referido no preâmbulo, de que "enquanto houver pessoas sem casa não é admissível que existam casas sem pesoas". E, nos termos desse mesmo preâmbulo, muitas ocupações eram efectuadas, "embora por via ilegal", "na satisfação de necessidades urgentes e atendíveis de extractos extremamente desfavorecidos da população". Pelo contrário, a incriminação, para futuro, das ocupações só foi justificada, nesse mesmo diploma, pelo facto de determinarem, "de forma irreversível, a paralisação de toda a indústria de construção".
(...)
[O] arguido agiu, pois, sem consciência da ilicitude da sua conduta não censurável e, por conseguinte, sem culpa ...".

O adjunto do Procurador da República,
José Alves Cardoso

REVISTA DO MINISTÉRIO PÚBLICO Nº1
Fevereiro de 1980