domingo, janeiro 22, 2006

O ARRUMAR DOS PAPÉIS (13)



Agora, que se começa outra vez a ouvir falar da alteração da “Lei do CEJ”,
é oportuno relembrar a tentativa que houve, em 2003/2004, de a reformular. Tendo chegado a ser elaborado um articulado de alteração à letra da lei, cuja formulação foi “acertada” por um grupo de trabalho que, sob a égide do Ministério da Justiça (sendo então ministra a Drª Celeste Cardona), juntou representantes dos Conselhos Superiores das magistraturas e o Director do Centro de Estudos Judiciários. Que foi “certificado” por uma declaração subscrita pelos presidentes do Supremo Tribunal de Justiça e Supremo Tribunal Administrativo, pelo Procurador-Geral da República e pelo vice-presidente do Conselho Superior da Magistratura, na qual estes “consensualiz[ar]am as suas posições acerca do recrutamento e formação de Magistrados”.
Aconteceu que todo o processo fora conduzido na ausência de qualquer debate público, ou sequer no seio das magistraturas, ou do Centro de Estudos Judiciários.
O projecto falhou, e ainda bem!
Na altura, sendo ainda Director-adjunto do CEJ, publiquei no jornal “Público” (edição de 2/5/2004) um artigo de opinião, que aqui transcrevo por se mostrar actual nos seus traços essenciais.

A FORMAÇÃO DOS MAGISTRADOS
É UM DEBATE DOS CIDADÃOS


A formação dos magistrados é um tema essencial do debate sobre a justiça.
E, curiosamente, não o tem sido.
O debate tem oscilado entre a visão fragmentada de processos concretos e o apelo às alterações legislativas. Pouco se tem quedado nas condicionantes do funcionamento do sistema e da aplicação da lei. E o recrutamento, a selecção e a formação dos juizes e procuradores é uma dessas condicionantes.
Se se continuar a passar ao lado deste tema, como doutros que determinam a qualidade da administração da justiça, corre-se o risco de, onde devam ser feitas mudanças, continuar a ser apenas a lei a mudar. O que - a experiência tem-nos dito - é manifestamente pouco, quando não contraproducente, particularmente se não se procura compreender se o que está mal é a lei ou a sua aplicação, ou se se pretendem superar por esta via a falta de meios ou as práticas deficientes.
A formação não é certamente o caminho mais fácil, mais rápido ou mais económico – mas é o caminho mais seguro para uma melhor prática judiciária. Por isso, a reflexão sobre a justiça não pode subalternizar a reflexão sobre a formação; por isso, o investimento na justiça não pode subalternizar o investimento na formação.
O escasso debate tem sido acompanhado por um também escasso investimento nos meios e na sua valorização profissional.
A complexidade social tem aumentado, a complexidade dos litígios submetidos à apreciação e decisão do sistema de administração da justiça tem aumentado, a complexidade do sistema normativo tem aumentado, a exigência e a capacidade crítica dos cidadãos face aos aplicadores da lei tem aumentado, o controlo processual e público da actividade dos magistrados e dos tribunais tem aumentado, a preparação e apetrechamento técnicos de importantes sectores que se relacionam diariamente com a prática judiciária tem aumentado. A resposta a esta realidade, nos últimos anos, tem sido escasso investimento, escassos recursos para a formação dos magistrados, introdução de processos especiais de recrutamento e selecção menos exigentes, redução dos períodos de formação de forma aleatória, a indiferença de sempre à importância da formação contínua.
Mais magistrados judiciais e do Ministério Público, recrutados e “encartados” mais depressa, para responder no imediato, da forma mais fácil e aparentemente mais económica, ao aumento da procura do sistema de justiça – tem sido esta a opção!
As tentativas – que as tem havido – de provocar e organizar a reflexão aberta sobre as vias de acesso às magistraturas, sobre os objectivos, as áreas essenciais, a organização, as metodologias e a responsabilidade pela formação, sobre a organização judiciária e a gestão dos quadros, não têm tido grande capacidade de resistência.. Sucumbem à rotina e à agenda mediática. Mais uma vez parece ter acontecido isso à mais recente das tentativas: o Congresso da Justiça.
Vinte e cinco anos de actividade completa este ano o Centro de Estudos Judiciários. A experiência desta instituição responsável pelo recrutamento, selecção e formação dos magistrados judiciais e do Ministério Público (que é também uma experiência de resistência, persistência e imaginação em face das inúmeras dificuldades que enfrenta) é insuficientemente conhecida e está por analisar e avaliar.
Estas são algumas constatações, incómodas, necessárias ao debate.
O debate tem de ser alargado e público.
O recrutamento, selecção e formação dos magistrados não é, de facto, um problema interno deste grupo profissional.
É um dos aspectos, uma parcela, do debate sobre o ensino do direito e a preparação para o exercício das profissões forenses.
A este propósito, verificou-se um grande consenso no Congresso da Justiça sobre a necessidade de se proceder a uma análise da adequação do ensino do Direito ministrado pelas Universidades às necessidades das profissões forenses; sobre a criação, aproveitando a provável redução da licenciatura em Direito para 4 anos, de um período de formação universitária, pós-licenciatura, tendencialmente com a duração de um ano, destinado à preparação conjunta para o ingresso nas profissões forenses, cuja organização teria a intervenção do Centro de Estudos Judiciários e da Comissão Nacional de Formação da Ordem dos Advogados, sendo a sua frequência com aproveitamento requisito da admissão à candidatura à formação profissionalizante; sobre a utilidade do intercâmbio de formadores, de experiências e a realização de acções conjuntas durante a formação inicial diferenciada; sobre a necessidade da formação contínua e o incremento da sua realização conjunta entre magistrados e advogados.
É um dos aspectos do debate sobre as atribuições constitucionais dos tribunais, sobre a legitimidade do poder judicial, sobre o estatuto dos juizes e o estatuto e as atribuições do Ministério Público, sobre o funcionamento do sistema de justiça e a sua relação com os cidadãos, sobre a aplicação do direito – em suma, sobre a justiça que, nos termos da Constituição da República Portuguesa, os tribunais administram em nome do povo.
Quais os requisitos para o ingresso na magistratura judicial e na magistratura do Ministério Público, quais as competências imprescindíveis, qual a formação exigível para que a função judicial seja exercida por magistrados tecnicamente competentes, com uma boa compreensão do seu estatuto constitucional e profissional, culturalmente esclarecidos e socialmente empenhados?
Este é um debate dos cidadãos.
Foi há alguns meses anunciada publicamente a constituição de uma comissão que iria preparar a alteração da legislação sobre esta matéria (concretamente, da lei que regula a estrutura e funcionamento do Centro de Estudos Judiciários).
A preparação desta alteração legislativa não pode circunscrever-se a um entendimento institucional entre representantes dos órgãos de cúpula e gestão das magistraturas, com a participação do Director do CEJ e sob a égide do Ministério da Justiça.
Do poder político exige-se o conhecimento público da sua opção política. Das outras entidades envolvidas exige-se que compreendam que as suas opções têm de ser sujeitas não só ao debate nas magistraturas, mas ao escrutínio público.
Legislar sobre esta matéria é uma competência da Assembleia da República, que pode, contudo, autorizar o Governo a fazê-lo. Mas, a avaliação da já grande experiência portuguesa nesta matéria, o estudo comparado das opções ensaiadas noutros países, a promoção de um alargado processo de audição parlamentar e do debate público – são passos necessários para que se evite um resultado pobre. E o resultado será pobre se for pouco participado e reflectido, se não comprometer o poder político na assunção das suas responsabilidades quanto às condições de execução dos programas de formação, se não for realmente inovador quanto à formação contínua, se estiver obsessivamente centrado no próprio umbigo de cada uma das magistraturas.


Rui do Carmo
Procurador da RepúblicaDirector-adjunto do Centro de Estudos Judiciári