quarta-feira, dezembro 28, 2005

CEJ: A CONSTRUÇÃO DO FUTURO PASSA PELA MEMÓRIA

Este texto foi por mim elaborado, a pedido do Centro de Estudos Judiciários, em Fevereiro de 2005, para ser incluído numa publicação com o título "Centro de Estudos Judiciários - A Memória do Futuro", a editar no âmbito da comemoração dos 25 anos da instituição.


“Centro de Estudos Judiciários – A Memória do Futuro” é um bom título. Evoca que a construção do futuro do CEJ passa pela sua memória. E essa evocação é importante porque questiona o que tem sido a prática da instituição.
Porque sobre o futuro, nomeadamente sobre as interrogações e sobre perspectivas para a formação, já me espraiei noutros lugares e noutros escritos(1), aqui vou falar da memória, ou melhor, da falta de memória. Porque o título da obra mo sugeriu, mas também porque foi uma das minhas preocupações do último ano em que exerci funções no Centro de Estudos Judiciários.
Do que falo quando falo de memória?
Falo do arquivo de documentação escrita, fotográfica, audiovisual e informática: da recolha, conservação com critério, tratamento, catalogação e preservação da documentação administrativa (que respeite, por exemplo, às pessoas, ou a correspondência trocada com personalidades de relevo da vida judiciária, política e cultural nacional e internacional); dos suportes escritos, fotográficos, audiovisuais e informáticos que ilustram a actividade desenvolvida (de formação jurídica e judiciária de magistrados e outros profissionais, de investigação, de colaboração com outras entidades, de relações internacionais, cultural, recreativa); dos trabalhos produzidos nestas actividades.
Falo do acervo museológico: dos “objectos de interesse didáctico, cultural e histórico ilustrativos da vida dos tribunais e ligados à administração da justiça”, que deveriam integrar o Museu Judiciário(2), e dos que respeitam à vida do CEJ.
Falo de história oral: de entrevistas, da recolha de depoimentos e opiniões, registados audiovisualmente e/ou por escrito, das pessoas que tiveram participação marcante na sua actividade, e que, neste momento, são os únicos depositários de muita informação que se foi perdendo ao longo dos anos.
Falo da necessidade de se fazer regularmente a análise e o balanço da actividade desenvolvida: de um trabalho de avaliação e de projecção futura dos seus resultados.
Falo da história do local: da memória do Limoeiro (da Cerca Moura, dos Paços, da Cadeia e do Tribunal, do CEJ).
Não falo, portanto, daquilo a que se costuma chamar “a memória da casa”, que depende da antiguidade de quem nela trabalha a cada momento e que tem alguma importância também na vida das instituições, mas que é uma memória nostálgica, por regra, e acanhada.
Exerci funções no Centro de Estudos Judiciários durante sete anos – de 15 de Setembro de 1997 a 15 de Setembro de 2004 –, cerca de quatro anos como docente da denominada jurisdição penal e cerca de três como director-adjunto com especiais responsabilidades na formação dos auditores de justiça nos tribunais e dos estagiários da magistratura do Ministério Público.
Nunca conheci a construção e a preservação da memória, em qualquer destas vertentes, como uma preocupação no Centro de Estudos Judiciários.
A preocupação foi sempre o dia seguinte.
E a falta de memória tem tido consequências marcantes.
Desde logo, impede a sua construção para o futuro, desprezando a preocupação em guardar, registar, preservar o que pode reconstituir o passado.
Relega para um plano secundário a importância da circulação e da partilha da informação sobre o presente.
No planeamento, organização, gestão e execução das actividades, a experiência não é um degrau para se alcançar um patamar superior, antes todos os debates e todas as iniciativas (re)começam teimosamente do zero, não se aprende com o já feito, as partes não se integram no todo.
Proporciona as condições para que o debate sobre a mudança seja empobrecido porque dele são varridas a experiência e os seus resultados, e o Centro de Estudos Judiciários se veja afastado da iniciativa ou de qualquer intervenção marcante na projecção do desenho do futuro da formação das profissões jurídicas e dos seus reflexos no sistema de justiça(3).
A instituição, por défice de inscrição, ora não se questiona, ora se autoflagela, hesita em ocupar o seu lugar e dificulta a sua inserção no tecido judiciário.
A história da justiça portuguesa, porque o CEJ marcou com a sua impressão digital o sistema de justiça democrático edificado após a Constituição da República Portuguesa de 1976, é amputada duma sua fatia de relevante importância.
O estudo e a investigação neste importante domínio não são promovidos e vêem-se dificultados.

Foi esta reflexão que me levou a propor, a propósito dos 25 anos do Centro de Estudos Judiciários, a realização de uma Exposição do Fundo Documental do CEJ, que foi inscrita no Plano de Actividades de 2003/2004.
Uma iniciativa em que a exposição propriamente dita seria apenas o momento da apresentação da memória, que teria necessariamente de passar por um processo da sua reconstrução possível e visava levar ao estabelecimento de regras e à criação de condições para que o seu registo, tratamento e conservação passassem a ser uma prática quotidiana.
Era, assim, uma realização que se não esgotaria em si, que foi traçada após ter sido constatado que o acervo existente no CEJ sobre a sua história e a sua actividade se devia em muito a iniciativas individuais, que estava desorganizado e numa parte em risco de deterioração, que os documentos e os objectos foram sendo guardados ou destruídos sem critério, que não havia nenhuma responsabilidade atribuída neste domínio nem grande sensibilidade institucional.
Mas se a intenção ia além do evento, enquanto exposição esta tinha um grande objectivo: não permitir a construção do esquecimento.
O quadro que tracei, realista, sobre o estado da memória do Centro de Estudos Judiciários, associado à falta de informação para o exterior (incluído o sistema de justiça) sobre a sua intensa e variada actividade e à falta de partilha dos seus êxitos, erros e preocupações (mesmo no seu interior e nos seus órgãos plurais), vem permitindo que cada um construa, a seu jeito, mesmo sem observação directa, uma imagem do que tem sido a formação dos magistrados em Portugal, se tomem por boas afirmações indemonstradas, ou que se reduza o debate à oposição de modelos legais sem qualquer confronto com a prática e os seus resultados.
Este é um processo de construção do esquecimento, que tem gerado tiques maniqueístas na análise do modo como o CEJ tem cumprido as suas competências legais ao longo dos 25 anos de vida, e incapacidade de mudança.
E o que ficaria para além do evento?
Ficaria organizado e conservado o acervo existente; ficariam definidas as necessidades de espaço físico e de meios humanos e as regras quanto ao registo das actividades, selecção, tratamento, organização, conservação, exposição e consulta da documentação e de objectos; a memória dos 25 anos de actividade ficaria ilustrada no catálogo da exposição; seria editada uma Monografia sobre a História do Limoeiro; os principais locais do edifício ficariam com sinalética e informação essencial permanentes, para uso de quem o frequentasse ou o visitasse; deste trabalho resultaria ainda a produção de documentação, em diversos suportes, de apresentação institucional do Centro de Estudos Judiciários.
Foi um projecto iniciado, mas interrompido por não ser compatível com as obras que, com começo várias vezes adiado, invadiram progressivamente todo o edifício ainda no primeiro semestre de 2004. Do pouco que se fez, ficou, contudo, a convicção de que era um projecto de concretização possível e deram-se passos concretos para a sua viabilização.
Seria importante que a ideia essencial fosse retomada, nestes ou noutros moldes.

Podia ter falado da minha memória de sete anos de intensa actividade: das amizades, do entusiasmo, dos momentos de desânimo, dos desafios senão mesmo das aventuras, das alegrias e das frustrações. De muitas mais! Mas essa memória teria o seu lugar num diário pessoal, que vou deixando por aí.
Se este fosse um depoimento mais intimista, dizia que me ficou um sabor agridoce!
Preferi falar da memória colectiva, com a ideia de que “a memória, onde cresce a história, que por sua vez a alimenta, procura salvar o passado para servir o presente e o futuro”(4).

Rui do Carmo
Procurador da República


(1) Cfr. “Do Estatuto Judiciário à Lei 16/98” (Encontro internacional sobre Recrutamento, Selecção e Formação de Magistrados, organizado pelo Sindicato dos Magistrados do Ministério Público, em Janeiro de 2000; texto publicado em “Que formação para os magistrados hoje?”, edição SMMP); “A formação dos magistrados em Portugal – perspectivas” (Colóquio internacional “Formação de Magistrados e Cidadania”, organizado pelo Ministério da Justiça em Abril de 2001; texto publicado na Revista do Ministério Público nº 87);Relatório final do Congresso da Justiça sobre “Formação das Carreiras Jurídicas, apresentado em Dezembro de 2003; “Formação de Magistrados: algumas reflexões à luz da realidade portuguesa” [Colóquio Internacional sobre Formação de Magistrados organizado por Magistrats Européens pour la Démocratie et les Libertes (Medel), em Maio de 2004, cujo texto está publicado no boletim “Justiça” nº 165/166, do SMMP].
(2) Previsto no artº 22º da Lei nº 16/98, de Abril, que “regula a estrutura e funcionamento do Centro de Estudos Judiciários”.
(3) O CEJ não foi o promotor nem teve, enquanto instituição, papel relevante na realização dos debates que, nos últimos anos, se têm feito em Portugal sobre a formação dos magistrados e, em geral, das carreiras jurídicas.
(4) Jacques Le Goff, “Memória”, Enciclopédia Einaudi nº1, ed. INCM.