sábado, setembro 10, 2005

QUEM SÃO OS MAGISTRADOS PORTUGUESES? (3)

Num enfoque distinto, mas igualmente importante para o enquadramento e definição dos itens a tomar em consideração num estudo sobre a actualidade da magistratura portuguesa, temos a tese de mestrado de Luís Eloy Azevedo, publicada em 2001 com o título Magistratura Portuguesa – Retrato de um mentalidade colectiva (Edições Cosmos), que, como confessa o autor, “nasce do “atrevimento” de tentar penetrar numa área inexplorada (história da magistratura portuguesa) mas de cuja compreensão depende (...) o tão falado redimensionamento ou “refundação” da nossa justiça”.
Com especial enfoque no Supremo Tribunal de Justiça, embora nele não se esgotem o seu conteúdo e ilações, este trabalho de investigação, constatando que “o país desconhece o seu STJ, [d]esconhece a sua história, quem são, como são e qual o perfil mental dos magistrados que ao longo de mais de um século e meio o têm corporizado”, tendo como vectores de análise o "culto da lei", a "reserva privada" e o "respeito pelos predecessores", parte de duas “interrogações motivadoras básicas”:
- “Quais os condicionalismos implícitos da arte de julgar da nossa Magistratura Suprema?
- De que forma as obrigações e proibições exteriores da nossa Magistratura Suprema criaram uma mentalidade específica, com reflexos na actividade prática da magistratura portuguesa?”
Duas linhas são “desenhadas” no decurso da história da “Magistratura Suprema”: uma de magistrados “políticos” (tendencialmente correspondente ao séc. XIX e inícios do séc. XX), com uma relação mais dessacralizada com a função, relações profissionais e privadas mais alargadas, gostos mais ecléticos e menos tradicionais, comportamentos menos austeros e mais profanos, mais acessíveis e que não escolheram, em princípio, a magistratura por vocação; outra de magistrados “técnicos” (preponderantes a partir do Estado Novo), mais “agarrados” à função, que apreciam a gravidade sacerdotal e cultivam o anonimato, tendem a separar o direito e os factos e não “confundem” justiça e política.
Este segundo período corresponde à criação de “um juiz com cultura jurídica mas sem cultura política, com uma cultura de dossier mas sem uma cultura de pessoas”, num modelo de “juiz-funcionário” (que é ainda hoje o nosso) que tem como um dos elementos caracterizadores “o facto de o grupo de referência para o qual o juiz tende a orientar o seu comportamento, de forma consciente ou inconsciente, estar no interior da próxima organização judiciária”, através do que se “efectua grande parte da “socialização do juiz”. Neste contexto, “não são bem vistos pelo corpo elementos de ruptura, desligados do passado ou da antiguidade, que quebrem a harmonia e a resistência à mudança, tradicionais na magistratura”.
A “neutralização opinativa da Magistratura” e o “culto exacerbado da lei” são apontados como “dois vectores de uma mesma estratégia política de submissão absoluta do judicial ao executivo”. Num ambiente em que o poder executivo fomentava o “culto da mediania” e a “separação entre a magistratura e a vida social”, “a omissão das suas próprias ideias sobre o mundo exterior e os acontecimentos é vista como um sinal de imparcialidade e grandeza enquanto a originalidade de opiniões e atitudes é vista como um sinal de exoterismo potencialmente perigoso”.
Conclui este estudo que “o sacerdócio judicial, a capacidade média, a reserva privada, a resignação económica, o refúgio caseiro, o convívio seleccionado e o porte respeitável representaram, sem dúvida, o seu papel no bloqueamento da criatividade, da autenticidade e da audácia da magistratura portuguesa”.
Esta investigação, que se centrou no ante 25 de Abril de 1974, e que “te[ve] em vista que se come[çasse] a viver não sem a memória, nem contra a memória, mas com a memória”, é, por isso mesmo, um importante contributo para o processo de construção da resposta actual à pergunta que titula esta série de textos.

Veremos como noutros países se tem procurado responder à pergunta: quem são os magistrados?