segunda-feira, setembro 12, 2005

E DE POEMA QUE VAI MUITO BEM COM AQUELA

PLATÃO

Cada um de nós guarda, algures,
o retrato de alguém que já não tem
rosto nem voz, e não o empresta
a ninguém, nem que nos peçam, como
se nada fosse, essa imagem sem passado.

Então, dizem, para que serve guardar,
numa gaveta fechada, a própria vida?
Que excessivo pudor obriga a apagar
o próprio nome que, uma vez, foi
sinónimo de uma perdida felicidade?

Ainda que não se lhe responda,
a pergunta mantém-se, por algum tempo,
no espírito que ela atormenta; e talvez
os olhos deixem a inquietação
transparecer – numa hesitação de brilho.

A nostalgia não tem uma figura
precisa; o corpo que lhe deu forma,
outrora, não pode restituir o sentimento
que só se teve por ter sido efémero;
e nenhum diálogo traduz a sua existência.

No entanto, ouço, é no intervalo em que
a memória separa quem fomos do presente
que nos atrai, sem que nada se oponha à
sua vertigem, que as mãos abstractas dessa
que o silêncio envolve nos puxam para si
- arrancando-nos à estagnação do ser,
à melancolia de uma visão de espelho,
ao peso dos seus baixos que oprimem a alma, e
entreabrindo apenas a possibilidade do regresso.

NUNO JÚDICE

in Um Canto na Espessura do Tempo (1992)