quarta-feira, setembro 28, 2005

A BECA QUE JÁ NÃO ENCOBRE O JUIZ

A leitura do Público de hoje (refiro-me às notícias sobre a vida e o percurso de juízes que intervieram ou intervirão no processo de Fátima Felgueiras) leva-me a transcrever aqui a parte inicial do texto da intervenção que proferi no II Encontro do Conselho Superior da Magistratura, que decorreu em Faro, a 3 e 4 de Dezembro de 2004.

“A beca, hoje, continua simbolicamente a marcar uma distância mas significa, sobretudo, que o Homem desaparece debaixo da função. Debaixo da beca pode estar o António, o José ou a Maria. Naquele momento e naquele lugar quem ali está é o Juiz. O conteúdo significante da beca é exactamente esse, não ser julgado pelo juiz “tal”, mas, apenas, pelo ou pela Juiz. Sob a beca (ou a toga) aquele que a traja torna-se um arquétipo”.
“(…) No dia em que os Juízes julguem “à civil” bem pode acontecer que alguém na audiência os interpele: “em nome de quem nos julga?”.
Quem o afirma é o conferencista desta sessão, o Juiz Desembargador Orlando Afonso, no seu livro “Poder Judicial – Independência in Dependência”. Mas a verdade é que o debate sobre o dever de reserva ganha hoje ainda maior importância precisamente porque, embora os juízes continuem a “julgar com beca”, esta cada vez menos encobre o juiz “tal” ou evita a pergunta “em nome de quem nos julga?”.
Porquê?
Porque existe uma maior atenção sobre a justiça, sobre os magistrados e o seu trabalho, um maior escrutínio público da actividade judiciária, fruto de uma maior consciência de cidadania - um efeito da democracia, para o qual muito contribuiu a existência de uma imprensa livre, que noticia e cria opinião não só sobre o funcionamento do aparelho de justiça e os casos judiciais, mas também sobre o percurso profissional dos magistrados responsáveis por processos com repercussão pública, a história dos dossiês em que tiveram intervenção, assim como sobre o seu percurso pessoal e a sua vida, pública e privada, sendo certo que, com alguma frequência, os objectivos de informar e esclarecer os cidadãos se misturam ou se deixam mesmo sobrepor por outros que vão da mera satisfação da curiosidade pública até à tentativa de deslocar os processos para fora dos espaços em que devem ser decididos, e de influenciar essa decisão.