A AFIRMAÇÃO DO INTERESSE PÚBLICO
Deixo aqui transcrito o texto da intervenção que proferi no Fórum Nacional do Ministério Público, realizado no dia 23 de Setembro em Lisboa.
Saúdo todos os colegas presentes nesta demonstração de unidade da magistratura do Ministério Público em defesa:
- da autonomia do MP e da independência dos Tribunais;
- da modernização, da eficácia e da qualidade de um serviço de justiça acessível e ao serviço de todos os cidadãos de forma igual;
- da auto-responsabilização da nossa magistratura no cumprimento cabal das suas funções constitucionais e estatutárias, mas também da responsabilização política e pública dos restantes órgãos de soberania pelo cumprimento das suas responsabilidades na área da justiça;
- de um estatuto sócio-profissional que dignifique a nossa função, não cego ao dever de solidariedade nacional, mas que rejeite basismos serôdios ou eventuais intenções de ofender a dignidade dos Tribunais e de quem os representa.
O Ministério Público é uma magistratura cujas funções, definidas na Constituição da República Portuguesa, lhe atribuem o objectivo institucional de defesa da legalidade, que não se fica apenas pelo exercício da acção penal e pela participação na execução da política criminal.
As suas atribuições desdobram-se, também:
- na representação em juízo e na assessoria jurídica ao Estado;
- na representação, defesa e garantia de acesso à justiça dos incapazes e dos mais desprotegidos;
- na promoção processual do interesse público, bem como dos interesses colectivos e difusos;
- na defesa da independência dos tribunais e da conformidade do exercício da função jurisdicional com a Constituição e a lei, e na fiscalização da constitucionalidade.
Este conjunto de atribuições, que implicam o Ministério Público na defesa de interesses fundamentais da Comunidade e da legalidade democrática, caracterizam a sua posição e importância como componente do órgão de soberania Tribunais, mas também caracterizam a sua posição no desenho e equilíbrio da organização do poder político constante da Parte III da Constituição da República Portuguesa, que se caracteriza pela “separação e interdependência de poderes” como é expressamente referido no seu artº 2º. E o respeito pela matriz constitucional, a sua defesa e aprofundamento, deverão constituir o denominador comum no debate sobre as reformas da justiça.
Conjunto de atribuições a cujo cumprimento está indissociavelmente ligado o seu estatuto de autonomia, a obediência única à lei e a imposição de isenção e objectividade; e que têm, a par da defesa do interesse público e da afirmação do direito, o objectivo de garantir a efectiva igualdade dos cidadãos perante a lei.
A proliferação e implantação de poderes fácticos, a que estão associados a generalização e os progressos das actividades de loobbing; a cada vez maior proximidade, entrelaçamento e confusão entre a governação e os interesses económico-financeiros; o pragmatismo como princípio da acção política; a volatilidade da Constituição e a legislação feita por medida; a ideia do carácter absoluto da legitimidade democrática obtida pelo sufrágio – são características dos dias de hoje que favorecem o caminho no sentido da “privatização da defesa jurídica da sociedade” e do “livre jogo dos donos [privados] do conflito”, e convivem mal com o exercício pelo Ministério Público das funções que lhe estão confiadas; com as suas funções de “gatekeeper do sistema”, como já foi chamado·.
Daí que se procure restringir a sua intervenção à área criminal. Não sendo possível pela via constitucional e legislativa, então o caminho seguido consiste: na limitação do recurso, pelo Estado, à representação pelo MP e às suas atribuições legais de consulta e assessoria jurídica (de especial relevância em matéria civil e administrativa), restringindo-as progressivamente aos casos em que tal é obrigatório, ou em que não se interpenetram interesses políticos e económicos cuja composição importe salvaguardar de “estranhas intromissões”; pela limitação dos instrumentos e meios de intervenção para cumprimento das competências previstas na lei; pela cedência às pressões dos interesses que têm em vista a privatização do impulso processual para a defesa e afirmação dos direitos dos mais desprotegidos.
Daí que, na própria área criminal, se procure condicionar o exercício da acção penal: reforçando a intervenção policial autónoma em áreas consideradas sensíveis para aqueles interesses, em que a actuação do Ministério Público se vê progressivamente limitada pela dependência dos meios que só a polícia dispõe e gere, seja ao nível da capacidade de direcção da investigação criminal seja, desde logo, ao nível da própria detecção e notícia dos factos com relevância criminal.
Saúdo todos os colegas presentes nesta demonstração de unidade da magistratura do Ministério Público em defesa:
- da autonomia do MP e da independência dos Tribunais;
- da modernização, da eficácia e da qualidade de um serviço de justiça acessível e ao serviço de todos os cidadãos de forma igual;
- da auto-responsabilização da nossa magistratura no cumprimento cabal das suas funções constitucionais e estatutárias, mas também da responsabilização política e pública dos restantes órgãos de soberania pelo cumprimento das suas responsabilidades na área da justiça;
- de um estatuto sócio-profissional que dignifique a nossa função, não cego ao dever de solidariedade nacional, mas que rejeite basismos serôdios ou eventuais intenções de ofender a dignidade dos Tribunais e de quem os representa.
O Ministério Público é uma magistratura cujas funções, definidas na Constituição da República Portuguesa, lhe atribuem o objectivo institucional de defesa da legalidade, que não se fica apenas pelo exercício da acção penal e pela participação na execução da política criminal.
As suas atribuições desdobram-se, também:
- na representação em juízo e na assessoria jurídica ao Estado;
- na representação, defesa e garantia de acesso à justiça dos incapazes e dos mais desprotegidos;
- na promoção processual do interesse público, bem como dos interesses colectivos e difusos;
- na defesa da independência dos tribunais e da conformidade do exercício da função jurisdicional com a Constituição e a lei, e na fiscalização da constitucionalidade.
Este conjunto de atribuições, que implicam o Ministério Público na defesa de interesses fundamentais da Comunidade e da legalidade democrática, caracterizam a sua posição e importância como componente do órgão de soberania Tribunais, mas também caracterizam a sua posição no desenho e equilíbrio da organização do poder político constante da Parte III da Constituição da República Portuguesa, que se caracteriza pela “separação e interdependência de poderes” como é expressamente referido no seu artº 2º. E o respeito pela matriz constitucional, a sua defesa e aprofundamento, deverão constituir o denominador comum no debate sobre as reformas da justiça.
Conjunto de atribuições a cujo cumprimento está indissociavelmente ligado o seu estatuto de autonomia, a obediência única à lei e a imposição de isenção e objectividade; e que têm, a par da defesa do interesse público e da afirmação do direito, o objectivo de garantir a efectiva igualdade dos cidadãos perante a lei.
A proliferação e implantação de poderes fácticos, a que estão associados a generalização e os progressos das actividades de loobbing; a cada vez maior proximidade, entrelaçamento e confusão entre a governação e os interesses económico-financeiros; o pragmatismo como princípio da acção política; a volatilidade da Constituição e a legislação feita por medida; a ideia do carácter absoluto da legitimidade democrática obtida pelo sufrágio – são características dos dias de hoje que favorecem o caminho no sentido da “privatização da defesa jurídica da sociedade” e do “livre jogo dos donos [privados] do conflito”, e convivem mal com o exercício pelo Ministério Público das funções que lhe estão confiadas; com as suas funções de “gatekeeper do sistema”, como já foi chamado·.
Daí que se procure restringir a sua intervenção à área criminal. Não sendo possível pela via constitucional e legislativa, então o caminho seguido consiste: na limitação do recurso, pelo Estado, à representação pelo MP e às suas atribuições legais de consulta e assessoria jurídica (de especial relevância em matéria civil e administrativa), restringindo-as progressivamente aos casos em que tal é obrigatório, ou em que não se interpenetram interesses políticos e económicos cuja composição importe salvaguardar de “estranhas intromissões”; pela limitação dos instrumentos e meios de intervenção para cumprimento das competências previstas na lei; pela cedência às pressões dos interesses que têm em vista a privatização do impulso processual para a defesa e afirmação dos direitos dos mais desprotegidos.
Daí que, na própria área criminal, se procure condicionar o exercício da acção penal: reforçando a intervenção policial autónoma em áreas consideradas sensíveis para aqueles interesses, em que a actuação do Ministério Público se vê progressivamente limitada pela dependência dos meios que só a polícia dispõe e gere, seja ao nível da capacidade de direcção da investigação criminal seja, desde logo, ao nível da própria detecção e notícia dos factos com relevância criminal.
A afirmação recorrente de que o Ministério Público tem excesso de poder é apenas uma forma eufemística de manifestar a incomodidade pelo exercício integral e cabal das funções que lhe estão confiadas, que se traduzem essencialmente em poderes de iniciativa que são objecto de um controlo multifacetado: político, judicial e pelos cidadãos. Só pode significar medo da afirmação da legalidade democrática e da afirmação prática do princípio constitucional segundo o qual “todos os cidadãos têm a mesma dignidade social e são iguais perante a lei”.
O Ministério Público vive entre as amplas competências que a Constituição e a lei lhe atribuem e as insuficiências e os bloqueamentos práticos que o impedem de as exercer cabalmente.
O caso da jurisdição administrativa é paradigmático, por isso a ela me irei referir.
Aí, o Ministério Público tem uma ampla legitimidade processual: para defesa da legalidade democrática – zelando por que a Administração actue em obediência à lei e ao direito, no respeito pelo princípio da igualdade e de forma justa e imparcial; para a promoção da realização do interesse público; para a protecção dos direitos, liberdades e garantias; e para a defesa dos demais valores e bens constitucionalmente protegidos, como a saúde pública, o ambiente, o urbanismo, o ordenamento do território, a qualidade de vida e o património cultural.
Mas, a verdade, é que ao alargamento das competências da jurisdição administrativa e das funções aí exercidas pelo Ministério Público, e à sua expansão territorial, não correspondeu o necessário reforço de meios humanos e de apoio técnico. Quando o número de tribunais de 1ª instância com competência em matéria administrativa era de 5, o quadro de Procuradores da República era de 23; agora, que são 16 os tribunais, o número de Procuradores da República apenas aumentou para 37. E, com um tipo de intervenção processual diferente, que exige uma melhor organização dos serviços e um reforçado apoio técnico, de que depende a capacidade de colocar em execução um programa pró-activo de acção pública, não só não existem assessorias técnicas nem orçamento para as contratar, como existem mesmo tribunais onde o MP não tem colocado no seu quadro nenhum funcionário. Isto, para além do que se passa a montante, para além dos filtros da Administração por que passam os factos antes de serem dados a conhecer ao MP e das dificuldades que este tem, amiúde, em obter os elementos de que necessita para exercer o seu múnus, ao ponto de ter de recorrer ao processo de intimação para poder exercer a acção pública.
Qual o resultado: o completo esgotamento da actividade do Ministério Público na representação do Estado-Administração, em acções de responsabilidade civil extra-contratual e contratual; e a incapacidade de exercer as suas outras competências, criando-se um grave vazio, nomeadamente, na defesa (que deve ser também promoção), que está a seu cargo, de valores e bens constitucionalmente protegidos de grande relevo para a vida em sociedade e, portanto, para os cidadãos, para a comunidade – vazio que só por ingenuidade se poderia pensar poder ser colmatado pela intervenção dos particulares, ou mesmo das ainda incipientes associações cívicas.
Ou seja, também aqui, à ilusória consignação na lei de amplas competências e “poderes” corresponde uma verdade de falta dos instrumentos necessários à sua execução.
O Ministério Público, para exercer as suas funções de órgão de justiça a quem cabe a defesa, nos tribunais, de valores e bens essenciais da comunidade necessita dos meios humanos e dos instrumentos de acção que lhe permitam assumir uma posição pró-activa, a única adequada à intervenção que a Constituição e as leis lhe exigem como magistratura de iniciativa.
Mais e melhores meios têm, de facto, de ser exigidos:
- mas, perspectivados em função do que é necessário para um cabal cumprimento das suas atribuições, do papel constitucional que lhe é atribuído, do programa de acção pública que estes lhe impõem, e não de uma estreita contabilidade das actuais rotinas diárias;
Mais e melhores meios são, de facto, necessários:
- mas, na perspectiva de uma intervenção com objectivos, que deixe de viver aprisionada dentro do processo, que esteja próxima dos cidadãos e da realidade social em que intervém, que não ceda à atracção do mimetismo para com a postura funcional do juiz;
Mais e melhores meios são, de facto, urgentes:
- para uma maior e melhor capacidade de intervenção, que não passa, a meu ver, por um alargamento exponencial do número de magistrados e pela sua funcionalização, mas sim por uma melhor gestão dos quadros, pela modernização dos métodos de gestão e de trabalho, por boas assessorias administrativas e técnicas, pela especialização e pelo reforço da formação.
Exigível, necessária e urgente é também a colaboração dos poderes públicos no esforço para garantir a afirmação e a aplicação das leis da República.
Estas breves palavras são:
- de afirmação da importância das funções do Ministério Público num Estado de direito democrático e da sua autonomia como condição da independência dos tribunais;
- de defesa de um Ministério Público de iniciativa e próximo dos cidadãos;
- de apologia de um Ministério Público com objectivos e que preste contas pelos resultados da sua acção.
Estou certo de que estes objectivos nos unem!
O Ministério Público vive entre as amplas competências que a Constituição e a lei lhe atribuem e as insuficiências e os bloqueamentos práticos que o impedem de as exercer cabalmente.
O caso da jurisdição administrativa é paradigmático, por isso a ela me irei referir.
Aí, o Ministério Público tem uma ampla legitimidade processual: para defesa da legalidade democrática – zelando por que a Administração actue em obediência à lei e ao direito, no respeito pelo princípio da igualdade e de forma justa e imparcial; para a promoção da realização do interesse público; para a protecção dos direitos, liberdades e garantias; e para a defesa dos demais valores e bens constitucionalmente protegidos, como a saúde pública, o ambiente, o urbanismo, o ordenamento do território, a qualidade de vida e o património cultural.
Mas, a verdade, é que ao alargamento das competências da jurisdição administrativa e das funções aí exercidas pelo Ministério Público, e à sua expansão territorial, não correspondeu o necessário reforço de meios humanos e de apoio técnico. Quando o número de tribunais de 1ª instância com competência em matéria administrativa era de 5, o quadro de Procuradores da República era de 23; agora, que são 16 os tribunais, o número de Procuradores da República apenas aumentou para 37. E, com um tipo de intervenção processual diferente, que exige uma melhor organização dos serviços e um reforçado apoio técnico, de que depende a capacidade de colocar em execução um programa pró-activo de acção pública, não só não existem assessorias técnicas nem orçamento para as contratar, como existem mesmo tribunais onde o MP não tem colocado no seu quadro nenhum funcionário. Isto, para além do que se passa a montante, para além dos filtros da Administração por que passam os factos antes de serem dados a conhecer ao MP e das dificuldades que este tem, amiúde, em obter os elementos de que necessita para exercer o seu múnus, ao ponto de ter de recorrer ao processo de intimação para poder exercer a acção pública.
Qual o resultado: o completo esgotamento da actividade do Ministério Público na representação do Estado-Administração, em acções de responsabilidade civil extra-contratual e contratual; e a incapacidade de exercer as suas outras competências, criando-se um grave vazio, nomeadamente, na defesa (que deve ser também promoção), que está a seu cargo, de valores e bens constitucionalmente protegidos de grande relevo para a vida em sociedade e, portanto, para os cidadãos, para a comunidade – vazio que só por ingenuidade se poderia pensar poder ser colmatado pela intervenção dos particulares, ou mesmo das ainda incipientes associações cívicas.
Ou seja, também aqui, à ilusória consignação na lei de amplas competências e “poderes” corresponde uma verdade de falta dos instrumentos necessários à sua execução.
O Ministério Público, para exercer as suas funções de órgão de justiça a quem cabe a defesa, nos tribunais, de valores e bens essenciais da comunidade necessita dos meios humanos e dos instrumentos de acção que lhe permitam assumir uma posição pró-activa, a única adequada à intervenção que a Constituição e as leis lhe exigem como magistratura de iniciativa.
Mais e melhores meios têm, de facto, de ser exigidos:
- mas, perspectivados em função do que é necessário para um cabal cumprimento das suas atribuições, do papel constitucional que lhe é atribuído, do programa de acção pública que estes lhe impõem, e não de uma estreita contabilidade das actuais rotinas diárias;
Mais e melhores meios são, de facto, necessários:
- mas, na perspectiva de uma intervenção com objectivos, que deixe de viver aprisionada dentro do processo, que esteja próxima dos cidadãos e da realidade social em que intervém, que não ceda à atracção do mimetismo para com a postura funcional do juiz;
Mais e melhores meios são, de facto, urgentes:
- para uma maior e melhor capacidade de intervenção, que não passa, a meu ver, por um alargamento exponencial do número de magistrados e pela sua funcionalização, mas sim por uma melhor gestão dos quadros, pela modernização dos métodos de gestão e de trabalho, por boas assessorias administrativas e técnicas, pela especialização e pelo reforço da formação.
Exigível, necessária e urgente é também a colaboração dos poderes públicos no esforço para garantir a afirmação e a aplicação das leis da República.
Estas breves palavras são:
- de afirmação da importância das funções do Ministério Público num Estado de direito democrático e da sua autonomia como condição da independência dos tribunais;
- de defesa de um Ministério Público de iniciativa e próximo dos cidadãos;
- de apologia de um Ministério Público com objectivos e que preste contas pelos resultados da sua acção.
Estou certo de que estes objectivos nos unem!
· Expressão utilizada por Cunha Rodrigues (“Poder. Lei e Cidadania”, in Em Nome do Povo, Coimbra Editora – 1999).
1 Comments:
Ainda estou para ver qual o controle político que tem o Ministério Público... A ver vamos!
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