quarta-feira, agosto 10, 2005

COBRANÇA DE ALIMENTOS DEVIDOS A MENORES ( Acórdão nº 306/2005 do Tribunal Constitucional - Uma Leitura)

No acórdão nº 306/2005 do Tribunal Constitucional (publicado no DR II S, de 05 de Agosto) foi decidido:
Julgar inconstitucional, por violação do princípio da dignidade humana, contido no princípio do Estado de direito, com referência aos nºs 1 e 3 do artigo 63º da Constituição, a norma da alínes c) do nº1 do artº 189º da OTM, aprovada pelo Decreto-Lei nº 314/78, de 27 de Outubro, interpretada no sentido de permitir a dedução, para satisfação de prestação alimentar a filho menor, de uma parcela da pensão social de invalidez do progenitor, que prive este do rendimento necessário para satisfazer as suas necessidades essenciais.
Uma deliberação com dois votos de vencido, sustentados por uma declaração na qual se expressa a opinião de que “o julgamento de inconstitucionalidade equivale, no fundo, por um lado, a dispensar do pagamento de alimentos o progenitor, que, na acção própria, foi condenado a prestá-los, assim inutilizando a avaliação que, pela via adequada, se fez quanto à sua capacidade de os prestar; note-se, aliás, que a sentença de condenação na prestação de alimentos pode ser alterada, nomeadamente por modificação da possibilidade de os prestar por parte do correspondente obrigado, e equivale, por outro, a transferir a correspondente obrigação para o progenitor a cuja guarda foram entregues os filhos”.
Um acórdão que deve ser lido com atenção, para que se compreendam correctamente a fundamentação e os limites do decidido, nomeadamente:
- que “o critério de comparação com o salário mínimo nacional não é o adequado para determinar a “proibição constitucional de penhora” nesta situação em que (na medida inversa da protecção ao devedor) também o princípio da dignidade da pessoa do filho pode ser posto em causa pelo incumprimento, por parte do progenitor, de uma obrigação integrante de um dever fundamental para com aquele”, podendo “reter-se a ideia geral de que, até que as necessidades básicas das crianças sejam satisfeitas, os pais não devem reter mais rendimento do que o requerido para providenciar as suas necessidades de auto-sobrevivência”;
- devendo ser, aqui, o rendimento social de inserção “o referencial do rendimento intangível adequado ao balanceamento dos interesses em conflito, o que afasta a transposição da jurisprudência que adopta na formulação decisória do julgamento de inconstitucionalidade a referência ao salário mínimo nacional”.

O dia-a-dia confronta-nos, contudo, com situações em que o progenitor que não tem outro rendimento quantificável que não o rendimento social de inserção acorda em conferência, no âmbito de um processo de regulação do exercício do poder paternal, pagar uma prestação alimentar, que não é por regra superior a 50 ou 75 euros. O Ministério Público não tem razões válidas para se opor à homologação do acordo nem o juiz para não o homologar, por três ordens de razões: pode o progenitor a quem não é confiado o filho, apesar da sua situação económica débil, não querer deixar de cumprir a sua obrigação, nem que para isso tenha de comprimir ainda mais as “suas necessidades de sobrevivência”; pode ter apoios familiares ou outros, ou rendimentos ocultos que lhe permitem efectuar o pagamento; pode, ainda, prevalecer a razão pragmática de ser pressuposto do posterior recurso ao Fundo de Garantia dos Alimentos Devidos aos Menores a fixação de uma quantia devida a este título.
Em caso de incumprimento, o caminho a seguir pode, por isso, ser diferente: ou transferir a responsabilidade do pagamento para aquele Fundo, desde que os restantes pressupostos também se verifiquem; mas também dar cumprimento ao disposto no preceito da OTM que foi objecto do acórdão do Tribunal Constitucional, se se apurar que, embora tendo como único rendimento quantificável o agora chamado social de inserção, o progenitor devedor beneficia de apoios em espécie, ou tem outros rendimentos não declarados, ou exibe bens ou apresenta hábitos de vida que o situam acima (às vezes, muito!) de quem tem apenas o “rendimento necessário para satisfazer as suas necessidades essenciais”.
A meu ver, este segundo caminho não é contrário à decisão do Tribunal Constitucional porque não viola o princípio da dignidade humana, e importa afirmá-lo porque todos os dias somos confrontados com a (reconhecida) deficiente fiscalização da atribuição do rendimento social de inserção e os (reconhecidos) sinais de rendimentos ocultos, inexistentes em termos fiscais – e esta é, porque tudo o mais está oculto, a única via de cobrança. É que, nestes casos, como se lê também no acórdão, “do lado do progenitor inadimplente não está somente em causa satisfazer uma dívida, mas cumprir um dever que surge constitucionalmente autonomizado como dever fundamental e de cujo feixe de relações a prestação de alimentos é o elemento primordial”.