sexta-feira, agosto 12, 2005

AO CORRER DA REVISTA DO MINISTÉRIO PÚBLICO (3)

Leiam, por favor, este finíssimo naco de prosa.

ARTICULADOS – ACÇÃO DE INVESTIGAÇÃO – RÉPLICA

1º Como escreveu Eça de Queirós, a sua geração – a célebre geração de 70 – absorvia, em ânsias juvenis, tudo quanto ao radioso Progresso, procedente de Paris, desembocava em Coimbra ruidosamente, em caixotes de madeira, na estação dos caminhos de ferro.
2º Depois, “tanto de dia como em alongadas noites de Verão”, esses jovens, tendo assimilado à pressa Proudhon e Hegel, reuniam-se na estúrdia de qualquer taberna e punham-se a discutir metafísica, no meio de sardinha assada e do copo de tinto.
3º Os tempos eram outros, evidentemente. A Academia não devia ser frequentada por jovens desinibidas e libertárias que desviassem a assembleia masculina das tabernas para os jardins de Santa Cruz, acenando-lhe com Wilhelm Reich, mal acabado de chegar, à estação dos caminhos de ferro, cheirando ainda às tintas da tipografia.
4º Mas se Wilhelm Reich não chegou naquele tempo, até porque não existia ainda, chegou, nos finais de uma outra década de 70, a uma outra geração homónima da primeira, menos metafísica e talvez menos prenhe de ideias, trazido no andamento ronceiro de um comboio que foi molestado pelo caminho, olhado certamente com desconfiança, à entrada das fronteiras pátrias.
5º A Revolução dos Cravos – diz o contestante – veio imprimir maior aceleração ao dito comboio e eis que, de súbito, uma dúzia de anos depois, aquele chegou à remota cidade de Guimarães, com os ecos esfarrapados da Revolução de Maio 68, eclodida na sempre progressiva Paris – a eterna Paris que tem o condão de fascinar as sucessivas gerações de 70, com se vê, e da qual esses proto-libertinos, que foram os poetas goliardos, em plena Idade Média já afirmavam: “Paradisus mundi, Parisius”.
6º Os restos mortais da Revolução de Maio 68 aportaram, pois, nesta cidade de Guimarães, trazidos no tal comboio ronceiro, e logo certas “franjas estudantis”, das tais que eram “mais desinibidas e libertárias”, assentaram o seu “quartel-general” nos jardins fronteiros ao Castelo – com diz o contestante – e armadas de brio que animou os nossos maiores na Batalha de S.Mamede, sem demora se arremessaram contra os bastões sagrados da nossa sociedade: “a virgindade, o amor monogâmico e a família, como aparelho repressivo”.
7º Quanto às jovens, as eternas desencaminhadoras da sensatez masculina, como está previsto nas cartilhas marialvas, diz o contestante, que essas se constituíram em corpo expedicionário para, alternadamente e à vez, irem ao Porto fornecer-se das armas dessa batalha, ou seja: a pílula anticoncepcional.
8º O contestante – claro – mal chegado das paragens africanas e tendo superado “ainda somente o quinto ano”, por isso com a música dos Lusíadas no ouvido, logo foi reunir-se a essa Ilha dos Amores, que era, pelos vistos, o jardim do Carmo e o Parque do Castelo.
9º Com a barba a despontar-lhe em pequenos tufos de pêlos, o contestante, que era então um noviço a iniciar-se naquele mística colectiva, ficou a balancear-se entre o amor idealista dos sonetos mais platónicos de Camões, que também tinha de ouvido, e os episódios mais escabrosos dos Lusíadas.
10º Entre a autoridade da família patriarcal e o ambiente dissolvente em que acabara de introduzir-se.
11º Entre a disciplina do ir às aulas todos os dias e a sedutora anarquia de mandar às urtigas tudo o que representasse ordem, autoridade, horários, professores, compêndios com a chancela do “imprimatur”.
12º A mãe da menor, com a convicção que lhe dava a força da idade e os argumentos libertinos respigados, quer nos manuais da Revolta de 68, quer na originalidade “hipye” do “make love not war”, muitas vezes lhe há-de ter dito para se despir das velhas concepções, que o namoro era uma coisa “idiota”, só aceitável no tempo da nossa avozinha, quando esta vinha suspirar para a sacada, enquanto o seu cortejador, cá em baixo, lhe fazia eternas juras de amor.
13º Mas qual quê? Couraçado nos velhos valores, recitando mentalmente aquele Soneto de Camões que começa assim: “Amor é fogo que arde sem se ver...”, o contestante apenas dedicou à mãe da menor uma afeição toda feita de amizade idealista, sem comércio sexual algum.
14º E mais ainda: logo veio a “proibição paterna, formulada vigorosamente”, e o contestante – que remédio! – lá foi vergado ao peso dessa autoridade, certamente acossado, à distância, pelos “slogans” do grupo, que devia gritar “abaixo a família” e atirar para os ares, à sombra do Castelo, como em tempos medievais os goliardos, hinos ao amor, à liberdade e à vida eterna.
15º Esta á mais traço, menos traço, mais pincelada, menos pincelada, a história imaginosa do contestante.
16º Até aqui foi a ficção. Utilizemos agora a técnica da distanciação, à semelhança de Brecht, para chamar o espectador à realidade.
17º A verdadeira história é a que está narrada na petição inicial. Por isso mesmo, se reafirma esta, ponto por ponto, em todo o seu articulado, rejeitando-se, por ficcional, tudo o que em contrário se diz.

(e continua)

António Artur Rodrigues da Costa
Procurador da República *

*Actualmente, Juiz Conselheiro do Supremo Tribunal de Justiça
Revista do Ministério Público nº9 - 1º trimestre de 1982